Como diz o ditado: errar é humano. Não é preciso de muita experiência de vida para constatar que cometer erros é inerente à condição humana. Todos tendemos ao erro, inevitavelmente. E, claro, também os prefeitos e prefeitas, na condição de gestores públicos.
O problema é que esse senso comum e razoável ainda não está bem internalizado pelos órgãos controladores. Uma das métricas usadas pelo Tribunal de Contas da União (“TCU”) é a da figura do “administrador médio”. Assim, o gestor público que agir como “administrador médio” não é responsabilizado.
Mas quem é o “administrador médio” do TCU? A Profa. Juliana Palma, da FGV Direito SP, explica, em artigo para o Jota:
“Para o Tribunal [de Contas da União], o administrador médio é, antes de tudo, um sujeito leal, cauteloso e diligente (Ac. 1781/2017; Ac. 243/2010; Ac. 3288/2011). Sua conduta é sempre razoável e irrepreensível, orientada por um senso comum que extrai das normas seu verdadeiro sentido teleológico (Ac. 3493/2010; Ac. 117/2010). Quanto ao grau de conhecimento técnico exigido, o TCU titubeia. Por um lado, precisa ser sabedor de práticas habituais e consolidadas, dominando com maestria os instrumentos jurídicos (Ac. 2151/2013; Ac. 1659/2017). Por outro, requer do administrador médio o básico fundamental, não lhe exigindo exame de detalhes de minutas de ajustes ou acordos administrativos que lhe sejam submetidos à aprovação, por exemplo (Ac. 4424/2018; Ac. 3241/2013; Ac. 3170/2013; 740/2013). Sua atuação é preventiva: ele devolve os valores acrescidos da remuneração por aplicação financeira aos cofres federais com prestação de contas, e não se apressa para aplicar esses recursos (Ac. 8658/2011; Ac. 3170/2013). Não deixa de verificar a regularidade dos pagamentos sob sua responsabilidade (Ac. 4636/2012), não descumpre determinação do TCU e não se envolve pessoalmente em irregularidades administrativas (Ac. 2139/2010).”
Fica a impressão de que, para o TCU, o gestor público nunca pode errar. Mas, na realidade, não é possível imaginar nenhum gestor público – ou ser humano – que conserve tais características em toda e qualquer decisão que tome. A realidade é muito diferente da cultura de intolerância ao erro do gestor público que é propagada por aí.
E o pior: essa cultura ainda provoca o famoso “apagão das canetas”; o gestor público, por medo de errar e ser responsabilizado, deixa de agir, mesmo quando necessário. Ou, no melhor dos casos, as decisões acabam sendo proferidas em um ambiente extremamente instável: a qualquer momento, as decisões podem ser revistas, reformadas e invalidadas pelos órgãos controladores, e o gestor público que as proferiu pode ser por elas responsabilizado.
Um primeiro passo para transformar a cultura de intolerância ao erro do gestor público
Por ser próprio da condição humana, não faz sentido punir o erro em si na gestão pública, mas ressalvar a responsabilização para as situações de erro grosseiro ou de dolo. É isso o que dispõe a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, reformada em 2018. Assim, a legislação atual assegura que o gestor público não será responsabilizado se não for bem sucedido em suas ações, tomadas com técnica razoável e sem intenção de causar dano.
Essa inovação legislativa foi o primeiro passo para mudar a cultura de intolerância ao erro do gestor público. Mas ainda é preciso que os órgãos de controle incorporem essa lógica em suas decisões. Infelizmente, há pesquisas que mostram que o TCU, mesmo depois dessa alteração na Lei, ainda não mudou de postura.
A boa notícia é que o Poder Judiciário (Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunais Regionais Federais) já vinha decidindo dessa forma, como podemos ver nesses casos específicos em que não houve responsabilidade pessoal do agente público, por não constituir erro grosseiro:
- a emissão de parecer jurídico sugerindo contratação direta (sem licitação), mediante interpretação fundamentada de lei, ainda que dela tenha divergido o órgão de controle externo da administração pública (STF, MS 24.073/DF, Plenário, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 06.11.2002).
- a emissão de parecer jurídico concluindo pela possibilidade de contratação direta (sem licitação), ainda que o agente público tenha anteriormente homologado parecer que opinava em sentido contrário (STJ, REsp 1.183.504/DF, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, j. 18.05.2010);
- a emissão de parecer jurídico opinando pela legalidade de assinatura de termo aditivo ao contrato administrativo para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro, mediante interpretação fundamentada de lei, ainda que tenha dela divergido órgão de controle externo da administração pública (STF, MS-AgR 35.196/DF, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, j. 12.11.2019);
- a subscrição de relatório que ampara decisão administrativa quando há controvérsia sobre o mérito do direito envolvido, ainda que contrário ao entendimento do órgão de controle externo da administração pública (STF, MS-AgR 30.928/DF, Primeira Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 07.06.2016);
- a emissão de parecer jurídico opinando pela admissibilidade de transação judicial para pagamento de precatórios e recomendando a celebração do acordo, ainda que tenha sido identificada irregularidade posterior no processo pelo órgão de controle externo da administração pública (STF, MS 24.631/DF, Plenário, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 09.08.2007);
- a emissão de parecer jurídico opinando pela admissibilidade de compensação tributária, mediante interpretação literal da Constituição Federal, ainda que jurisprudência majoritária entenda pela impossibilidade (STJ, RHC 82.377/MA Quinta Turma, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 10.10.2017).
Como agir em um momento de transformação da cultura de intolerância ao erro do gestor público?
Um processo administrativo bem instruído, com a tomada de decisões públicas baseadas em evidências e com a participação de sujeitos que importam, é uma boa medida de segurança jurídica ao gestor público que eventualmente terá que enfrentar questionamentos perante órgãos de controle. Para saber mais sobre isso, reportamos ao artigo “Decisões públicas em época de Covid-19 (E o que podemos aprender com elas?)” dessa coletânea.
Este conteúdo foi elaborado pelo Pessoa Valente | Motta Pinto Advogados como fruto da parceria com a Gove no Programa de Apoio a Candidaturas Municipais. As análises compartilhadas nesse canal refletem disposição legal e entendimentos correntes de tribunais administrativos e judiciais, sem representar assessoria jurídica a candidato ou partido político.