Se pudéssemos condensar todo o conhecimento e prática sobre o orçamento público, provavelmente o resultado seria o seguinte: “é vedada a realização de despesa sem prévio empenho” (Lei nº4.320/1964, Art. 60). Esta simples frase é significativa porque interliga diversos aspectos já tratados e outros que ainda abordaremos neste texto:
- para empenhar uma despesa, é preciso ter planejado, elaborado e aprovado o orçamento público na forma da Lei Orçamentária Anual, e haver saldo orçamentário suficiente;
- o empenho de uma despesa, depende da arrecadação ou da perspectiva de arrecadar os recursos financeiros que servirão de fonte para sua realização;
- para liquidar e pagar seus credores, o município precisa ter empenhado previamente a despesa;
- realizar despesa sem prévio empenho pode ser punido administrativamente (CF88, Art.71, II), civil (Lei nº8.429, Art.10, IX), política (Decreto-Lei nº201, Art.1º, V; Lei Complementar nº64, Art.1º, I, “g”; Lei nº8.429, Art.12, II) e penalmente (Decreto-Lei nº2.848, Art. 359-D).
Por isso, vamos explorar com atenção e cuidado os principais pontos relativos à execução e controle do orçamento público.
Etapas da execução do orçamento público
Vamos dividir esta seção em duas partes: uma sobre a receita, e outra sobre a despesa, uma vez que de acordo com o Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público – MCASP da Secretaria Nacional do Tesouro – STN:
“A receita e a despesa orçamentárias assumem, na Administração Pública, fundamental importância, pois representam o montante que o Estado se apropria da sociedade por intermédio da tributação e a sua contrapartida aos cidadãos por meio da geração de bens e serviços. Também se torna importante em face de situações legais específicas, como a distribuição e destinação da receita entre as esferas governamentais e o cumprimento dos limites legais para a realização de despesas, impostos pela Lei Complementar no 101/2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Etapas da receita orçamentária
Conceitualmente, as receitas orçamentárias são as disponibilidades de recursos financeiros que ingressam durante o exercício e que aumentam o saldo financeiro da instituição. Essas receitas pertencem ao Estado, transitam pelo patrimônio do Poder Público e, via de regra, por força do princípio orçamentário da universalidade, estão previstas na Lei Orçamentária Anual – LOA.
Portanto, a execução da receita orçamentária passa pelas seguintes etapas:
Previsão:
De acordo com o manual de contabilidade aplicada ao Setor Público, “Compreende a previsão de arrecadação da receita orçamentária constante da Lei Orçamentária Anual (LOA), resultante de metodologias de projeção usualmente adotadas, observada as disposições constantes na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)”.
A previsão implica planejar e estimar a arrecadação das receitas orçamentárias que constarão na proposta orçamentária.
Lançamento:
“é ato da repartição competente, que verifica a procedência do crédito fiscal e a pessoa que lhe é devedora e inscreve o débito desta” (Lel 4320, Art.53). Importante notar que, apesar do caráter tributário que o Art.142 da Lei 5.172 (Código Tributário Nacional) confere ao lançamento, a Lei 4320 traz um rol mais amplo de objetos, incluindo “quaisquer outras rendas com vencimento determinado em lei, regulamento ou contrato” (Lei 4320, Art.52). Porém, também é verdade que nem todas as receitas passarão pela etapa de lançamento, como as doações em dinheiro;
Arrecadação:
Ocorre quando os contribuintes entregam os recursos devidos aos agentes arrecadadores e instituições financeiras autorizadas. Por força do Art.35 da Lei 4.320, é nesse momento que se considera realizada a receita;
Recolhimento:
Ocorre quando os agentes arrecadadores e instituições financeiras repassam os recursos arrecadados à conta específica do Tesouro.
Execução da despesa
A despesa orçamentária pública é o conjunto de dispêndios realizados pelos entes para o funcionamento e manutenção dos serviços prestados à sociedade.
A execução da despesa ocorre em três estágios:
Empenho:
É um ato administrativo da autoridade competente (ordenador de despesa) que reserva parte da dotação orçamentária para um fim específico (L4320, Art.58), geralmente materializado na nota de empenho. Pode ser do tipo ordinário (valor certo, pago em uma única parcela), global (valor certo, mas pago em parcelas) ou estimativo (valor incerto, que pode ser anulado ou complementado, conforme o caso). É comum os entes implementarem em seus sistemas de informação o “pré-empenho”, que, apesar de não ter previsão legal, ajuda os gestores orçamentários a não estourarem o limite dos créditos.
Liquidação:
É o procedimento que verifica a liquidez e certeza da obrigação, ou seja, verifica o objeto do pagamento, o valor a ser pago e a quem deve ser pago (L4320, Art.63). Como às vezes a liquidação pode demorar, o Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público prevê o “empenho em liquidação”, que corresponde a um empenho cujo fato gerador já ocorreu (ou seja, o fornecedor já entregou o material, ou o prestador já executou o serviço), mas cujo processo de liquidação ainda está em andamento. Isso é importante para evitar dupla contagem do passivo financeiro.
Pagamento:
Verificada a autorização legislativa da despesa (empenho) e a liquidez e certeza da obrigação (liquidação), finalmente é possível pagar o credor (L4320, Art.64).
Alterações no orçamento público ao longo da sua execução
Por melhor que seja sua elaboração inicial, diversas situações podem exigir alterações no orçamento público. Para dar conta dessa flexibilidade, há alguns mecanismos básicos:
- créditos suplementares: reforçam a dotação de créditos já existentes na Lei Orçamentária Anual (LOA), exigem indicação da fonte de recursos, podem ser criados por lei específica, ou já pré-autorizados na própria LOA;
- remanejamentos, transposições e transferências: alteram a classificação institucional, programática ou da categoria econômica da despesa, e, via de regra, essas operações são vedadas (CF88, Art.167, VI), salvo autorização em lei (geralmente na Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO), ou se ocorrerem no âmbito das atividades de ciência, tecnologia e inovação, com o objetivo de viabilizar os resultados de projetos restritos a essas funções (CF88, Art.167, §5º).
- créditos especiais: criam novo crédito orçamentário não previsto originalmente na LOA, exigem indicação da fonte de recursos, e devem ser criados por lei específica;
- os créditos extraordinários: destinados a despesas urgentes e imprevistas, geralmente criando novo crédito orçamentário, não exigem indicação da fonte de recursos, e podem ser abertos diretamente por decreto (ou medida provisória, nos municípios que dispuserem deste mecanismo);
Como fonte de recursos para a abertura de créditos suplementares e especiais, temos:
- o superávit financeiro apurado em balanço patrimonial do exercício anterior (L4320, Art.43, §1º, I);
- o excesso de arrecadação (L4320, Art.43, §1º, II);
- a anulação parcial ou total de dotações orçamentárias ou de créditos adicionais, autorizados em Lei (L4320, Art.43, §1º, III);
- novas operações de crédito (L4320, Art.43, §1º, IV);
- recursos que, em decorrência de veto, emenda ou rejeição do projeto de lei orçamentária anual, ficarem sem despesas correspondentes (CF88, Art.166, §8º);
- a reserva de contingência (Decreto-Lei nº200, Art.91).
Limitação de empenho (“contingenciamento de despesas”)
O famoso (e impopular) “contingenciamento de despesas” está previsto no Art.9º da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº101 – LRF), sob o nome oficial de “limitação de empenho”. Ela ocorre quando, ao final de um bimestre, o município verificar “que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais”. Nesses casos, os Poderes Executivo e Legislativo promoverão, por ato próprio, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela LDO.
Sobre esse tema, vale frisar alguns pontos:
- o contingenciamento não pode atingir despesas obrigatórias , bem como o serviço da dívida, e outras indicadas na LDO;
- o contingenciamento pode atingir as emendas parlamentares impositivas na mesma proporção da limitação incidente sobre o conjunto das demais despesas discricionárias (CF88, Art.166, §18);
- caso haja restabelecimento da receita prevista, mesmo que parcial, a recomposição das dotações limitadas poderá ocorrer de forma proporcional;
- o Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2238 considerou inconstitucional o §3º do Art.9º da LRF, que prevê a possibilidade do Poder Executivo limitar o empenho do Poder Legislativo, caso este não proceda à sua própria limitação.
Restos a pagar
Devido à natureza da execução orçamentária, pode ocorrer de o empenho de uma despesa se dar em determinado exercício, mas sua liquidação e/ou pagamento só ocorrer em outro exercício. Quando isso ocorre, é preciso inscrever esses empenhos em restos a pagar, e não efetuar sua anulação (L4320, Art.36).
É interessante que, para fins orçamentários, essas despesas consideram-se realizadas, mesmo ainda não tendo sido pagas (L4320, Art.35). Dessa forma, nos exercícios subsequentes, quando essas despesas forem finalmente liquidadas e pagas, serão consideradas despesas extraorçamentárias, uma vez que já foram contabilizadas como despesa orçamentária no exercício em que ocorreu o empenho.
No entanto, é preciso diferenciar restos a pagar de despesas de exercícios anteriores (DEA). O Art.37 da L4320 estabelece os seguintes requisitos às DEA:
- deveria haver crédito próprio e com saldo suficiente no orçamento do exercício em que ocorreu o fato gerador;
- se encaixam em alguma das seguintes situações:
- por qualquer motivo, não tenham sido processadas (empenhadas) na época própria;
- restos a pagar com prescrição interrompida; ou
- compromissos reconhecidos após o encerramento do exercício correspondente.
Portanto, apesar de também se referirem a fatos geradores passados, as DEA correm por conta de créditos consignados no orçamento atual, e portanto são despesas orçamentárias – ao contrário dos restos a pagar, que foram devidamente processos (empenhados) na época própria.
Dito isso, é preciso alertar sobre duas vedações importantes:
- é crime “ordenar ou autorizar a inscrição em restos a pagar, de despesa que não tenha sido previamente empenhada ou que exceda limite estabelecido em lei” (DL2848, Art.359-B)
- nos dois últimos quadrimestres do mandato, só será possível assumir obrigações com parcelas a serem pagas no exercício seguinte caso haja contrapartida suficiente de disponibilidade de caixa (LRF, Art.42; DL2848, Art.359-B).
Transparência na execução do orçamento público
Para dar efetividade ao princípio da publicidade, a CF88, a L4320 e a LRF previram diversos mecanismos de transparência, e que servem também como instrumentos de gestão para os próprios administradores públicos.
Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO)
Previsto no §3º do Art.165 da CF88, o RREO deve ser publicado em até trinta dias após o encerramento de cada bimestre, e é composto, grosso modo (LRF, Art.52):
- bimestralmente, de:
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-
- demonstração da execução da receita e da despesa;
- apuração da Receita Corrente Líquida (RCL), que serve de base para o cálculo de diversos limites;
- resultado primário e nominal;
- realização de receitas e despesas previdenciárias;
- pagamento de restos pagos e a pagar;
-
- no último bimestre do ano, de:
-
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- demonstração do atendimento à Regra de Ouro, conforme Art.167, inciso III, da CF88;
- projeções atuariais dos regimes de previdência social, geral e próprio dos servidores públicos;
- demonstração da variação patrimonial, evidenciando a alienação de ativos e a aplicação dos recursos dela decorrentes [1];
-
- em caso de frustração da receita e limitação de empenho:
-
- justificativa sobre a frustração e sobre a limitação;
- medidas de combate à sonegação e à evasão fiscal, adotadas e a adotar, e as ações de fiscalização e cobrança.
Como se vê, o RREO é um dos principais indicadores a guiarem os gestores públicos na administração financeira orçamentária do município.
Relatório de Gestão Fiscal (RGF)
Via de regra, o RGF deve ser emitido em até 30 dias após o encerramento de cada quadrimestre. No entanto, municípios com até 200.000 (duzentos mil) habitantes podem emiti-lo semestralmente. Diferente do RREO, focado na execução do orçamento, o RGF se preocupa principalmente com o cumprimento dos limites constitucionais e legais. Por isso, deverá conter, grosso modo:
- em cada edição deve haver o comparativo quanto ao limite de:
- despesas com pessoal;
- dívidas consolidada e mobiliária;
- concessão de garantias;
- operações de crédito, inclusive por antecipação de receita;
- e a indicação das medidas corretivas adotadas ou a adotar, se ultrapassado qualquer dos limites;
- no último quadrimestre (ou semestre):
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- demonstrativo do montante de disponibilidades de caixa e inscrição de restos a pagar;
- demonstrativo de que as operações de crédito por antecipação de receita orçamentária (ARO) foram quitadas até o dia 10 de dezembro de cada ano, e de que não foram realizadas ARO no último ano de mandato do prefeito.
Balanço Orçamentário (BO)
Conforme o Art.102 da L4320, o BO “demonstrará as receitas e despesas previstas em confronto com as realizadas”. Na prática, suas versões parciais são apresentadas bimestralmente no RREO, mas sua versão final também constitui demonstração independente no balanço geral anual do município. É com base nele que se verificar o resultado orçamentário.
Seu quadro principal apresenta a execução orçamentária por categoria econômica, origem (receitas) e grupo de natureza de despesa. Além disso, discrimina:
- as receitas em:
- previsão inicial;
- previsão atualizada;
- receitas realizadas;
- saldo;
- as despesas em:
-
- em dotação inicial e atualizada;
- despesas empenhadas, liquidadas e pagas.
Por sua vez, dois quadros secundários acompanham o BO, e evidenciam a execução de restos a pagar processados (originados de empenhos liquidados) e não processados (originados de empenhos não liquidados).
Balanço Financeiro (BF)
A maior parte dos indicadores que um gestor público precisa acompanhar o orçamento público estão nos relatórios descritos anteriormente. Porém, o BF também pode contribuir para o melhor entendimento da dinâmica da execução orçamentária no seu município. Conforme a L4320, ele é composto por quatro seções:
- receita e despesa orçamentária realizada/executada, por fonte/destinação de recurso, discriminando as ordinárias e as vinculadas;
- transferências financeiras recebidas e concedidas;
- recebimentos e pagamentos extra orçamentários (incluindo os restos a pagar);
- saldo em espécie do exercício anterior e o que fica para o exercício seguinte.
Com base nisso, é possível responder às seguintes questões:
- Quanto das minhas receitas estão vinculadas, e quanta estão disponíveis para gastos gerais? Quanto maior a proporção de receitas vinculadas, menor a flexibilidade na condução das políticas públicas;
- Qual a proporção de restos a pagar (RP) em relação às despesas orçamentárias do exercício? Uma grande proporção de RP pode significar atrasos nos processos administrativos de execução de despesa;
- Qual a proporção de movimentações extra orçamentárias frente às orçamentárias? Aqui, não há uma direção necessariamente boa ou ruim, mas, caso essa proporção seja alta, é recomendável compreender o motivo de tanta atividade financeira à margem do orçamento.
Avaliação e controle
Este texto tratou da execução do orçamento, e dos relatórios que oferecem transparência tanto ao gestor público quanto à sociedade. Ao final do exercício, essas contas serão avaliadas e julgadas – tanto pela própria administração, como pelo Poder Legislativo e tribunais de contas.