Texto retirado no Jornal O Globo
Do ventilador pulmonar que salva vidas na pandemia ao aplicativo que permite que alunos com deficiência visual grave possam ouvir o que está escrito no quadro-negro; da plataforma que municia cidades de informações e soluções capazes de gerar economia aos cofres públicos ao detector de fumaça que informa em três minutos o início de um incêndio florestal. Por trás dessas inovações estão empresas que usam a tecnologia para resolver problemas coletivos, mas também geram lucros e atraem investimentos em um segmento ainda pouco desenvolvido no Brasil, o dos negócios de impacto social.
Esse movimento ainda é incipiente, mas está em aceleração. O número de start-ups mais que dobrou em quatro anos. Já são 1.272 empresas com esse perfil mapeadas pelo Pipe Social, que acompanha o setor. Em 2017, eram 579.
— Em 2009, quando começamos, ninguém entendia do que estávamos falando. O tema começou a ganhar corpo em 2016 e 2017 e acelerou na pandemia. Hoje, há várias gestoras com esse perfil — afirma Daniel Izzo, presidente e um dos fundadores da VOX Capital, primeira gestora no Brasil a investir somente em negócios de impacto.
São R$ 500 milhões já investidos pela gestora, que também tem entre os fundadores os empresários Antônio Ermírio de Moraes Neto e Kelly Michel. Izzo diz que o movimento é irreversível. Cita duas evidências: financiamentos mais baratos para empresas que têm metas ambientais e o caso de uma empresa de delivery que recebeu recomendação negativa na abertura de capital ao não prever pagamento decente aos trabalhadores.
— O entendimento foi: se não pagar direito, o negócio não vai vingar —resume.
BEM COLETIVO
Para ser considerado de impacto social, um negócio precisa ter a intenção de gerar algum dividendo social, não ser apenas consequência de uma ideia, ser transparente e medir o efeito positivo que provoca. No Brasil, o investimento nessas empresas soma US$ 785 milhões, segundo o BNDES, o equivalente a pouco mais de R$ 4 bilhões. Esse montante representa apenas 0,11% do total de US$ 715 bilhões do mercado mundial, que cresce rápido. Em 2015, eram US$ 77 bilhões aplicados no setor.
A Gove, uma govtech (como são chamadas as start-ups voltadas para o setor público), dedicada a aumentar a eficiência do setor público, recebeu uma fração desse bolo em outubro do ano passado. A gestora Astella investiu R$ 8 milhões de um fundo de venture capital (com foco em negócios de alto potencial e risco) na empresa. A Astella está entre as gestoras de recursos que estão se especializando em negócios de impacto. Foi o maior aporte já feito numa govtechno Brasil.
A plataforma da Gove ajuda prefeituras a identificarem oportunidades para melhorar a gestão financeira e aponta soluções para problemas a partir da análise da montanha de dados e estatísticas disponíveis nas contas municipais. Pesquisa preço, mapeia apoios federais e programas disponíveis. As prefeituras pagam pelo serviço, mas o impacto esperado na eficiência do setor público é contabilizado da seguinte forma: a economia para os cofres municipais deve ser de três vezes o custo da plataforma da start-up.
— Três coisas que aconteceram recentemente vão mudar o setor: a aprovação do marco legal de start-ups, o capítulo de compras públicas, que cria mecanismo seguro para start-ups oferecerem soluções para o governo, e a lei do governo digital. O setor vai avançar muito mais. Provavelmente estamos presenciando uma virada histórica — diz Rodolfo Fiori, que fundou a Gove com Ricardo Ramos.
Ainda engatinhando, mas com uma ideia que começa a ganhar espaço, a LookforMe ajuda pessoas com deficiência visual a ouvirem o que está escrito no quadro-negro de uma sala de aula ou em uma apresentação virtual exibida numa videoconferência, em tempo real. E o conteúdo pode ser armazenado pelo usuário. O aplicativo nasceu da parceria do analista de sistemas Amaury Dudcoschi Junior com Rui Kelson Fonseca, engenheiro de sistemas numa fintech, uma start-up financeira, que dedica meio período ao projeto. Kelson tem deficiência visual, e a irmã de Dudcoschi, paralisia cerebral. O trabalho voluntário do analista no Instituto dos Cegos do Paraná uniu os dois.
— O programa permite que o aluno participe plenamente da aula, não fique à margem —afirma Dudcoschi.
Eles estavam prontos para testar o software em sala de aula, em um contrato feito com a Prefeitura de Curitiba, quando a pandemia interrompeu tudo. Resolveram adaptar o software para o home office, ajudando trabalhadores com deficiência visual a acompanharem as reuniões virtuais.
— Há dois meses, o programa Microsoft para Start-Ups nos escolheu para receber apoio de US$ 120 mil em serviços de armazenamento, inteligência artificial, recursos tecnológicos e suporte de especialistas —diz Dudcoschi.
FUNDOS DE R$ 800 MILHÕES
Com o potencial e benefícios para a sociedade desses negócios, o BNDES anunciou que vai selecionar fundos de investimentos em participações para levantar R$ 800 milhões para apoiar o crescimento de empresas com esse perfil. E dobrou o número de participantes da segunda edição do programa de aceleração BNDES Garagem. Serão escolhidas 135 start-ups de impacto social e ambiental. Na edição de 2019, foram 75.
— Desde que tenham o que chamamos de mínimo produto viável, podem se inscrever — explica Bruno Laskowsky, diretor de Participações, Mercado de Capitais eCrédito Indireto do BNDES.
Uma das apoiadas pelo BNDES e que está prestes a receber investimento é a umgrauemeio, que desenvolveu um detector de incêndios florestais e assinou o primeiro contrato em 2017. Segundo Rogério Cavalcante, presidente e fundador da empresa, o detector capaz de captar a fumaça nos primeiros minutos do incêndio começou a ser usado pela International Paper, multinacional de celulose. Também atende à Suzano, gigante brasileira do ramo. A start-up já monitora 4 milhões de hectares, sendo 1,3 milhão de floresta nativa. Câmeras alimentadas por energia solar, conectadas à internet e instaladas em torres formam o sistema.
— Houve queda de 90% de área queimada onde instalamos torres — diz Cavalcante, contando que a empresa está em processo para receber um investimento de R$ 9 milhões.
A Magnamed está no mercado há mais tempo, desde 2005. Fabricante de ventiladores pulmonares usados em transporte e resgate que foram vitais no atendimento aos pacientes de Covid-19, a empresa conseguiu rapidamente triplicar a produção mensal, de 200 em 2019 para 600 em 2020. No auge da pandemia, fabricou 2.040 só em julho. O faturamento saltou de R$ 50 milhões para R$ 343 milhões em um ano. “Para os investidores, sem dúvida a Magnamed se mostrou um investimento de impacto que rapidamente mostrou seu potencial de retorno, seja para a sociedade ou como retorno financeiro”, disse, em nota, Wataru Ueda, presidente e um dos fundadores.
Autora: CÁSSIA ALMEIDA