Ser gestor público no Brasil não é fácil: ao mesmo tempo em que há gritantes desigualdades e enormes carências sociais para atender, a máquina pública tem dificuldades estruturais para funcionar bem e as decisões administrativas ficam sujeitas a um intenso escrutínio e instabilidade. Essa é a realidade atual também na gestão pública local, seja dos municípios nas megalópoles, nas cidades médias, seja dos municípios de populações menores.
Por variadas razões, vivemos hoje em um ambiente público no qual há excesso de controles sobre a ação pública: interno e externo à administração pública, pelas Controladorias, até dos advogados públicos responsáveis por sua defesa, Poder Legislativo e seus Tribunais de Contas, Ministério Público e, como não poderia deixar de ser, pelo Poder Judiciário. Diferentemente do que se poderia esperar, os controles não são coordenados ou cooperativos: em muitos casos, até concorrem fortemente entre si nas esferas administrativa, cível e criminal.
Em um contexto no qual a insegurança jurídica e a imprevisibilidade das decisões públicas jogam contra o funcionamento eficiente do Estado, como preservar e estimular a atuação dos gestores públicos que procuram inovar com soluções criativas e transparentes? Como obter um controle equilibrado e permeável às inovações na gestão pública? Este é um debate institucional quente, em andamento, com impacto direto na gestão pública local.
O impacto da Lei da Segurança Jurídica nas Decisões Públicas na gestão pública municipal
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro é uma lei diferente: sua função é fixar normas de interpretação jurídica, que orientam e balizam os aplicadores do direito na sua atividade profissional. A sua modificação recente pela Lei 13.655/18 – a Lei da Segurança Jurídica nas Decisões Públicas – atende às demandas por aprimoramento na aplicação do direito público e pela criação de mecanismos capazes de reduzir a incerteza, a litigiosidade e a instabilidade dos atos jurídicos públicos.
Para isso, a nova Lei apostou na consideração da realidade e na mensuração das consequências para a tomada de decisões públicas. Definiu parâmetros de interpretação que induzem todos os operadores do direito a olharem para a realidade da administração pública e decidirem, conforme suas competências, de forma comprometida e consequente.
Por que a nova Lei é um marco também para a gestão pública local? Ao estabelecer parâmetros de segurança jurídica para a tomada e controle das decisões públicas, ela serve para:
- determinar que as decisões públicas sejam tomadas com a consideração das suas consequências práticas e a ponderação de sua proporcionalidade e das possíveis alternativas, evitando que surjam apenas de valores jurídicos abstratos (art. 20);
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- em um cenário de forte restrição fiscal, agravado ainda mais pela pandemia da covid-19, decisões públicas eficientes surgirão de um esforço na definição de prioridades nas políticas públicas locais e na racionalização do gasto público, e não de abstrações principiológicas distantes das necessidades de cada município;
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- determinar que os operadores do direito, na atividade de interpretação jurídica sobre a gestão pública, considerem os obstáculos e as dificuldades reais enfrentadas pelos gestores, as circunstâncias práticas que condicionam as ações deles, assim como as exigências das políticas públicas que devem alcançar (art. 22);
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- em um País com 5.570 municípios, com enorme diversidade populacional majoritariamente urbana, a consideração da realidade administrativa é capaz de modular a interpretação e aplicação do direito para as circunstâncias muito variadas da gestão pública municipal;
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- garantir que a regularização de situação administrativa inválida ocorra de forma proporcional e equânime, evitando perdas anormais e excessivas, pelo dever de indicação das consequências jurídicas e administrativas da invalidação (art. 21);
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- quando houver reconhecimento de invalidade em decisões públicas tomadas anteriormente, inclusive pela própria prefeitura, a indicação expressa das consequências jurídicas e administrativas tem a capacidade de equacionar os interesses gerais e individuais em conflito;
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- garantir que a transição jurídica nas decisões públicas, por novas interpretações e orientações com imposição de deveres e condicionamentos, ocorra de forma proporcional, equânime e eficiente (art. 23);
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- em situações de alteração de entendimento administrativo, inclusive decorrentes de mudança de governo municipal, a fixação de um regime de transição viabiliza o equilíbrio entre os novos interesses gerais e as situações então existentes;
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- garantir que a revisão de atos do poder público considere as orientações gerais de quando foram praticados, evitando que a mudança de orientação resulte em invalidade de situações constituídas (art. 24);
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- ao levarem em conta as orientações gerais existentes no passado, quando as decisões públicas foram produzidas, os municípios garantem segurança jurídica, previsibilidade e estabilidade, capaz de atrair investimentos, inclusive para a prestação de serviços públicos de interesse local;
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- pactuar compromissos na aplicação do direito público, de forma a afastar incertezas e litígios e com eles obter soluções jurídicas proporcionais, equânimes, eficientes e compatíveis com os interesses gerais (art. 26);
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- na gestão pública local, há um vasto campo para a promoção do consenso nas situações de licenciamento urbanístico e da atividade econômica;
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- propiciar compensação quando o processo impuser malefícios ou prejuízos anormais e injustos a quem teve de suportá-lo (art. 27);
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- é possível incentivar a proteção ao patrimônio histórico-cultural local com um melhor equilíbrio entre os interesses da coletividade e dos particulares atingidos;
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- dar confiança aos servidores públicos de que somente serão pessoalmente responsabilizados por suas decisões e opiniões técnicas no exercício da função em caso de dolo – ou seja, em situações de desvio funcional – ou erro grosseiro – e não de erros comuns –, estimulando os gestores honestos e diligentes, que são a enorme maioria, a construírem soluções inovadoras para os interesses gerais (art. 28);
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- a criatividade, o experimentalismo e a abertura à inovação na gestão pública local são incentivadas com a aceitação, pelo direito público brasileiro, do erro como dado inerente à condição humana;
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- ampliar a eficiência e favorecer a isonomia com o uso de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas (art. 30);
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- como os interesses costumam ser mais marcados e identificáveis na gestão pública local, recorrer aos instrumentos de poder normativo é uma boa estratégia para as autoridades administrativas exercerem o poder republicanamente;
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- intensificar a realização de consultas públicas para criar normas no âmbito administrativo (art. 29);
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- as consultas públicas para a edição de atos normativos pelas autoridades administrativas constituem um poderoso instrumento para ampliação das condições de participação da sociedade na gestão pública local e para o aprimoramento das escolhas públicas.
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Como aumentar a previsibilidade das decisões públicas e a segurança jurídica da gestão local?
A chegada da nova Lei colocou a pauta da segurança jurídica em definitivo na gestão pública dos Municípios brasileiros. Construí-la no cotidiano da vida local é o grande desafio da próxima década.
Para isso, precisaremos alcançar um estado de equilíbrio entre e a gestão local e os seus múltiplos controles, de forma a evitar que o excesso destes tirem o espaço para boas inovações e sufoquem a diversidade de soluções para problemas muito variados. O primeiro passo é partir da identificação da realidade local e dos dados para informar a ação pública e os controles. Esse é o caminho para promover a eficiência na gestão pública dos Municípios e qualificar os seus controles.
Este conteúdo foi elaborado pelo Pessoa Valente | Motta Pinto Advogados como fruto da parceria com a Gove no Programa de Apoio a Candidaturas Municipais. As análises compartilhadas nesse canal refletem disposição legal e entendimentos correntes de tribunais administrativos e judiciais, sem representar assessoria jurídica a candidato ou partido político.