Diante de um cenário transformado pela pandemia, as soluções tradicionais – e as normas por meio das quais elas são implementadas – não dão conta dos problemas complexos enfrentados pela administração pública, principalmente no âmbito da saúde e economia. Experimentar novas formas de atuação, implantar medidas inovadoras e flexibilizar regras existentes que se mostram excessivas no atual contexto deixam de ser ações excepcionais, passando a ser uma realidade para quem está à frente dos Municípios.
Tudo isso é feito amparado no que ficou conhecido como legislação de crise. É a reunião das normas editadas no contexto da pandemia: Lei Federal 13.979/2020, decretos regulamentadores (Decreto 10.282/2020 e Decreto 10.288/2020), e da MPV 966/2020. Mesmo não tendo sido editada na pandemia, a Lei 13.655/2018 (Lei da Segurança Jurídica) se mostra forte aliada dos gestores públicos. Com essas normas, busca-se assegurar:
- rapidez
- segurança
- decisões técnicas ao gestor público.
Rapidez
Não dá para esperar, evidentemente, a realização de um processo licitatório para comprar respiradores e equipamentos de proteção individual (EPI). Para a compra ser eficaz, ela precisa ser feita em uma velocidade extraordinária. Pensando nisso, a Lei Federal 13.979/2020 e seus decretos regulamentadores trouxeram regras excepcionais para as contratações emergenciais, tanto com dispensa de licitação, quanto por pregões abreviados. Sobre isso, interessante é o Guia Recomendações para Transparência de Contratações Emergenciais em Resposta à Covid-19, produzido pelo Tribunal de Contas da União e pela Organização não-governamental Transparência Internacional-Brasil que dissemina boas práticas envolvendo tais contratações.
Segurança
O gestor público não pode deixar de agir, quando entender necessário, com medo de futura responsabilização pelos seus atos (ou omissões) pelos órgãos de controle. Daí, a MPV 966/2020 disciplina que os gestores públicos só poderão ser responsabilizados pelas suas decisões relacionadas ao combate à pandemia, por atos praticados com dolo (intenção) ou erro grosseiro, na linha do que já bem definia o artigo 29 da Lindb (Decreto-Lei 4.657/1942) incluído pela Lei da Segurança Jurídica (Lei 13.655/2018).
Decisões técnicas
Em razão das características da pandemia decorrente do surto da Covid-19, há grandes incertezas científicas sobre a propagação do novo coronavírus, dos tratamentos da Covid-19 e das características da imunidade. As decisões públicas devem ser fundamentadas nos entendimentos científicos disponíveis à época da decisão, os quais podem mudar com o tempo, a partir de novas descobertas no campo da saúde.
De fato, a legislação de crise, bem como a própria Lei da Segurança Jurídica, vieram a calhar nesse momento. Decidir, que já é uma tarefa difícil em qualquer circunstância, tornou-se ainda mais complexo em tempos de pandemia. A um só tempo, as decisões públicas devem ser ágeis, efetivas e, quando possível, dotadas de capacidade técnica. Nesse contexto, repensar o modo pelo qual os gestores públicos tomam decisões públicas nunca foi tão importante.
Afinal, o que podemos aprender com o processo de tomada de decisão na pandemia?
Toda decisão pública tem como importante aliado um processo administrativo bem instruído. Os gestores públicos, ao basearem suas decisões em evidências, certamente diminuem as chances de serem responsabilizados por órgãos de controle (superior hierárquico, Tribunais de Contas, Ministério Público e Poder Judiciário).
É verdade que a ideia do processo administrativo como fator imprescindível na tomada de decisão ainda não está incorporada no dia-a-dia da administração pública. Normalmente, o gestor público considera processo administrativo como sinônimo de burocracia, que só serve para “acumular papelada”. Mas não é disso que estamos falando aqui.
O “bom” processo administrativo, a anteceder toda e qualquer decisão pública, deve ser capaz de identificar as evidências que justificaram a decisão, contando, inclusive, com a participação dos sujeitos relevantes sempre que possível. Com as incertezas científicas trazidas pela Covid-19, e a necessidade de respostas rápidas pela administração pública, o processo administrativo passa a ser remédio essencial para evitar futura responsabilização de gestores públicos.
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a ADI 6.421, que teve por objeto a MPV 966/2020, reforçou que a análise de responsabilidade do gestor público será feita analisando caso a caso, de forma que o processo administrativo decisório será o único instrumento capaz de demonstrar a validade dos atos administrativos. Segundo o STF, a “autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará a sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades médicas e sanitárias internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena que se tornem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.” (STF, ADI 6.421, Plenário, Relator Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 21.05.2020.)
O accountability da decisão pública
Estamos falando em accountability das decisões públicas tomadas no momento da crise, o que impõe ao gestor público cumprir ritos mínimos que permitam verificar que suas decisões foram tomadas a partir de um processo encadeado de fatos, lastreado em evidência técnica disponível à época da decisão e sem intenção de causar dano.
Para que seja possível demonstrar amanhã as circunstâncias nas quais as decisões de hoje são tomadas, é preciso decidir com base em evidências disponíveis à época, documentando os motivos que levaram o gestor público a tomar determinada decisão. O processo administrativo bem instruído é boa prática para salvaguardar o gestor público. Em outras palavras: na hipótese de órgãos de controle desafiarem suas decisões, a defesa e caminho para a análise pelo controlador estará no processo administrativo.
Se um “bom” processo administrativo poderá auxiliar na análise de eventual processo de fiscalização e controle da administração pública, ele não é suficiente para eximir o administrador público de errar. O tema do erro do gestor público será tratado em nosso próximo texto.
Este conteúdo foi elaborado pelo Pessoa Valente | Motta Pinto Advogados como fruto da parceria com a Gove no Programa de Apoio a Candidaturas Municipais. As análises compartilhadas nesse canal refletem disposição legal e entendimentos correntes de tribunais administrativos e judiciais, sem representar assessoria jurídica a candidato ou partido político.